Crianças, ecrãs e o oftalmologista

Crianças, ecrãs e o oftalmologista

“Dra, diga-lhe que os ecrãs fazem mal aos olhos”

Artigo da autoria de Rita Gama, médica oftalmologista, coordenadora da equipa da oftalmologia pediátrica do Hospital da Luz e diretora clínica da Gama Eye Care.

Esta é uma das frases mais comuns na consulta de oftalmologia pediátrica nestes tempos. Pais aflitos e crianças contrariadas, ambos dominados pelas novas tecnologias. Todos sentimos o quão absorventes podem ser e como invadem o nosso tempo livre e o nosso lar. É a evolução inevitável à qual não conseguimos fugir.

De facto, estão demonstrados alguns efeitos indesejáveis do abuso dos ecrãs no sistema visual: o olho seco ligeiro é o mais habitual e, como sabemos, trata-se facilmente. Mas também já foram reportados casos de esotropia aguda e descompensação de insuficiência da convergência em crianças que usam os ecrãs mais de 4h/dia. Estas complicações exemplificam como podem ser graves que as repercussões oculares do abuso de ecrãs e que culminam frequentemente numa cirurgia de estrabismo. Felizmente são raras.

De uma forma indireta o uso de ecrãs também contribui para o aumento da incidência de miopia, uma tendência que já tinha sido notada antes da pandemia COVID-19 e que se acentuou com os sucessivos isolamentos. É conhecido o efeito protetor das atividades ao ar livre na incidência de miopia, inclusivamente são recomendadas 1-2h/dia pela Organização Mundial da Saúde. Tendo sido condicionadas estas atividades nos últimos dois anos, o aumento da incidência da miopia secundário à pandemia já foi reportado em alguns países. Curiosamente, quanto à progressão da miopia, o tempo passado no exterior parece não ter influência no aumento do comprimento axial da criança míope.

Além das repercussões visuais, existe outra muito preocupante: a dependência dos ecrãs, onde surge um comportamento aditivo na criança afetando o seu equilíbrio emocional e o da família.

Como responder à questão que nos lançam?

Ficam algumas dicas para orientar as dúvidas levantadas pelos pais.

  • Comece por identificar sinais de dependência dos ecrãs:
  • Quantas são as horas de utilização de ecrãs diárias,
  • Alterações do comportamento como irritabilidade, tiques, insónias, grande frustração quando são retirados os ecrãs e falta de interesse nas brincadeiras adequadas à idade.
  • Dê conselhos para uma utilização saudável dos ecrãs:
  • Não exceder 1-2h/dia.
  • Criar pausas frequentes e, se necessário, usar lubrificação ocular.
  • Desligar os ecrãs 1-2h antes de dormir.
  • Impedir o uso no quarto (que não permite a vigilância dos pais) e à hora da refeição.
  • Confirmar se a criança brinca e dorme bem.
  • Promover as atividades ao ar livre, com tantos outros efeitos de promoção da saúde.
  • É importante preparar os pais para a resistência inicial (que por si é um sinal de dependência) e encorajá-los nesta luta (sim luta), que pode ser desgastante.
  • A última palavra vai para a criança. Há que explicar o prejuízo que pode trazer e reforçar autoridade dos pais.

Obviamente que a relação entre as crianças e os ecrãs poderá ser muito mais complexa e sair do âmbito da atuação do oftalmologista. De facto, o sistema visual é apenas a porta de entrada dos comportamentos aditivos e dos conflitos subsequentes. Mas uma consulta de oftalmologia onde estes assuntos são abordados pode fazer a diferença. Digo pela minha experiência, que conheço alguns casos onde a mudança foi notada. E é muito reconfortante sentir o alívio dos pais, “voltou a ser o filho que era antes”, e perceber a paz a regressar ao ambiente familiar.

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